A palavra folclore (em inglês folk-lore)
foi empregada pela primeira vez em 22 de agosto de 1846. O arqueólogo
inglês Willians Johns Thoms, em artigo endereçado à revista The Atheneum,
assinado sob o pseudônimo Ambrose Merton, foi o pioneiro. O termo
abrangia o que Thoms entendia por “antiguidades populares”: contos,
lendas, provérbios, mitos, romances, crenças, rifões superstições etc.
Nesse artigo, nota-se a preocupação com o desaparecimento das tradições
populares face à modernização dos costumes. A mesma apreensão já havia
levado dois filólogos alemães, os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm, a
coletarem histórias e lendas do povo de seu país, reunidas
posteriormente no Kinder- und Hausmärchen (Contos da criança e do lar, 1812), a mais famosa coletânea de contos populares já feita.
No
Brasil, a partir dos pioneiros Celso de Magalhães (1849-1879), Couto de
Magalhães (1836-1898) e Silvio Romero (1851-1914)), pesquisadores das
mais diversas áreas vêm dedicando tempo e envidando esforços na tentativa de entender as manifestações da cultura espontânea. Com Cantos populares do Brasil e Contos populares do Brasil,
o sergipano Silvio Romero deu o impulso necessário à pesquisa do
folclore, embora seu trabalho se detivesse mais na recolha de
modalidades da literatura oral do que no estudo do material. A
publicação do livro O folclore, por João Ribeiro, a partir de
conferências realizadas na Biblioteca Nacional em 1913, é o marco
inicial dos estudos sistemáticos do folclore brasileiro.
Bumba meu boi
O folclore, além da literatura oral, abrange as festas religiosas e profanas, os folguedos, as brincadeiras
infantis, as danças tradicionais, o vestuário e a culinária. No rol
entram, também, as superstições e os costumes. Às vezes, se fundem
texto, dança e gestual. É o caso do bumba meu boi, que, além de
folguedo, é um auto popular bastante difundido, ligado ao ciclo de
festas natalinas. Sua popularidade deve-se à importância que teve a
pecuária no processo de colonização do País. Confunde-se com o que
estudiosos classificam como ciclo do gado, a ponto de apresentar
familiaridades com o conto popular O vaqueiro que não mentia. No
enredo deste, a honestidade de um vaqueiro é posta à prova quando uma
moça bonita o instiga a matar o boi favorito do patrão, pois deseja
comer um pedaço: língua, fígado ou coração.
A
origem do bumba-meu-boi remonta à mitologia da Grécia Antiga: Dionísio
Zagreu, filho de Zeus e Perséfone, por instigação de Hera, foi morto,
despedaçado e devorado pelos titãs. Zagreu estava, no momento de sua
morte, metamorfoseado em touro. O seu coração, no entanto, foi recolhido
por Atena e, devorado por Sêmele, deu origem ao segundo Dionísio, o
deus do vinho. O despedaçamento ritual sobreviveu no folguedo. No
Nordeste brasileiro, região de maior fixação do tema, os pedaços do boi
geralmente são distribuídos entre os conhecidos de quem veste a armação
representando o animal.
Dois mitos brasileiros
Alguns
mitos abrangem todo o território nacional, embora de região para região
difiram nas características e atribuições (que podem ser benéficas e
maléficas). O Saci, por exemplo, representado como um menino negro
girando ou correndo numa só perna, com um cachimbo de barro e um gorro
vermelho na cabeça, resulta da fusão de crenças de origem europeias e
africanas. Da Europa, ele herdou o gorro (barrete), dos duendes. Antes
disso, os indígenas acreditavam tratar-se de um curumim peludo e
travesso. Segundo a crença popular,
para alguém capturar o saci é preciso, primeiro, atirar uma peneira no
redemoinho em que ele quase sempre se oculta. De posse do gorro, o captor, então, terá o maroto Saci às suas ordens.
Do Curupira, originalmente um ente medonho que impunha terror aos habitantes da floresta, deriva o Pai do mato, conhecido no sudoeste da Bahia como “um velho horroroso”, também coberto de pelos,
barba densa e cabelos desgrenhados, “protegendo os animais dos abusos
dos caçadores”. É mais alto que a árvore mais alta da floresta e
persegue os caçadores que violam os tabus ligados à sua atividade. O dia
de São Bartolomeu, 24 de agosto, por exemplo, é interdito à caça. Nesse
dia aziago, acreditam os caçadores, “o diabo está solto”.
Saci versus Halloween
O dia 31 de outubro, quando se comemora nos Estados Unidos o Dia das Bruxas (ou Halloween), foi escolhido para se comemorar, por aqui, o Dia do Saci. A proposta visa a combater a exagerada influência do Halloween na
cultura brasileira. Algumas escolas, no dia, promovem atividades às
quais as crianças devem comparecer caracterizadas como bruxas. A
resposta brasileira parece
ter surtido efeito, pois chamou atenção para a figura do Saci que se
tornou, informalmente, uma espécie de mascote do folclore brasileiro.
Folclore e educação
As
escolas geralmente trabalham o tema apenas em agosto que,
institucionalmente, é o mês do folclore. No entanto, a cultura popular
está mais presente em nossas vidas do que supomos. Inconscientemente, ao
fazermos um gesto de saudação,
podemos estar repetindo um exemplo surgido há milênios. O folclore é,
segundo o grande estudioso do tema no Brasil, Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986), “o milênio na contemporaneidade”.
Sem abrir mão da programação de agosto, outras atividades podem ser sugeridas. Desde a recolha de contos populares,
lendas e adivinhas, até a encenação de autos tradicionais, a escola tem
um papel fundamental na formação cultural dos seus alunos que
fortalecerá, com a noção da consciência identitária, os alicerces da
cidadania. As lendas de origem de uma comunidade, por exemplo, têm muito
a dizer ao nosso povo. É o caso da cidade de Paratinga, na Bahia, cujo
surgimento está diretamente ligado à religiosidade popular.
Entendamos,
finalmente, o folclore dentro de um processo dinâmico: em constante
evolução. A soma de todas as manifestações tradicionais, de nossas
crenças mais arraigadas, vivas e cotidianas, é uma das possíveis
definições para folclore.
E quem souber mais histórias que conte outra!...
Nota: este artigo foi publicado originalmente na revista Páginas Abertas (Paulus) em agosto de 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário